Os últimos anos foram um balde de chuva fria na imagem que os brasileiros tinham de si mesmos. Achávamos que éramos um povo tolerante, relaxado, simpático e otimista. Descobrimos, a duras penas, que o machismo, o racismo, a homofobia e o apego à violência ainda fazem secção do nosso DNA cultural.
O desrespeito aos mortos também faz secção deste tórax mental. É simplesmente estarrecedor saber que alguém vazou na internet fotos do corpo de Marília Mendonça no IML de Caratinga (MG). Pior ainda é constatar que a procura por essas imagens disparou. Segundo a colunista Camila Appel, closes das partes íntimas da cantora e compositora já estariam em sites pornográficos. É de virar o estômago.
Marília Mendonça foi o maior fenômeno individual da música brasileira da última dezena. Em pouco tempo de curso, ela se tornou uma das artistas mais populares do Brasil, emplacando um hit detrás do outro e arrastando multidões para seus shows.
Sua morte num acidente de avião em novembro de 2021, com somente 26 anos de idade, deixou o país em choque. Seu funeral em Goiânia atraiu milhares de fãs. No entanto, menos de um ano e meio depois, sua memória é profanada, e do pior jeito verosímil.
Alguém pode alegar que a curiosidade sobre a morte –dos outros, é evidente– é um pouco inerente ao ser humano, e não só aos brasileiros. Os circos romanos lotavam de gente querendo ver gladiadores lutando até a morte, ou cristãos sendo devorados por leões. Execuções em rossio pública sempre foram um grande engodo de público. Há um pouco em nossas psiques que aprecia ver sangue, sofrimento, mutilações –mais uma vez, dos outros, é evidente.
Até entendo esse impulso, inclusive porque eu não sou imune a ele. Mas nem por isso devemos ceder. Vivemos em sociedade, e há limites que precisam ser respeitados. Todas as culturas pregam o reverência aos mortos. A Igreja Católica chegou ao excesso de proibir, durante séculos, que cadáveres fossem abertos e estudados, atrasando o progressão da medicina.
Mas eis que surge a internet, garantindo o anonimato a quem quiser espoliar as regras mais básicas do comportamento. Marília Mendonça, de ídolo e vítima, passa de repente a ser somente um pedaço de mesocarpo.
E é triste pensar que alguém que lutou contra a balança durante boa secção da vida, para se encaixar no padrão estético imposto pela indústria da tendência, tem seu corpo exposto em rossio pública depois de morta.
A família está indignada, e já começou a tomar providências legais. Simples que vai ser impossível punir todo mundo que compartilhou essas fotos, mas uma investigação pode chegar à fonte do vazamento. Uma punição exemplar talvez iniba episódios parecidos no porvir.
Talvez. Finalmente, é do Brasil que estamos falando. Um país onde, não vasqueiro, a urbanidade parece não viver.