A notícia da morte da cozinheira e apresentadora de TV Palmirinha, no último dia 7, me levou a uma viagem —no tempo e no espaço.
Ela foi provavelmente a última representante de uma linhagem de apresentadoras populares de culinária que, no ar, em plena TV ocasião, espelhavam aquilo que seu público queria (e sentia que poderia) ser, ao menos na cozinha.
Uma história que teve seu maior impacto 61 anos detrás, com a estreia da icônica Julia Child (1912-2004) na TV pública americana –o que leva minha memória aos Estados Unidos.
Só vi seus programas muito depois, pela internet. Mas cheguei a presenciar, in loco, a uma (sempre divertida!) lição sua num evento em Aspen, no Colorado –uma cidade/estação de esqui que é belíssima no verão, quando as montanhas ficam verdes e o sol, além de fulgir, aquece. É quando acontecem festivais de artes, de esportes, de música e também de gastronomia. Foi num desses, no primícias dos anos 1990, que vi a mítica Júlia em ação.
Também a encontrei outras vezes –gigante, estridente—, mais reservadamente, em salas de prensa de eventos na América do Setentrião. E por isso posso declarar que aquele estilo Julia Child na TV –expansivo, estabanado, de uma naturalidade quase ingênua— não era um personagem: era ela mesma.
O que nos leva à sua encarnação no Brasil, a apresentadora Ofélia Anunciato (1924-1998), que encantou as telespectadoras durante décadas na TV ocasião. Curiosamente, nesta semana recebi, de uma livraria inglesa, a publicidade de alguns livros de cozinha, entre os quais “A Taste of Brazil – author: Melo, Josimar”. Por 35 libras (ou muito menos, o usado), zero mal.
Mas se trata na verdade da versão de uma editora americana do livro “Ofélia – O Sabor do Brasil”, belamente editado no Brasil pela DBA e premiado com o Jabuti, e onde eu exclusivamente fiz a apresentação; o livro é de receitas dela. Com dez anos de TV Tupi e mais 30 de Bandeirantes, Ofélia ganhava o mundo pelas páginas de um livro.
Porquê Julia Child, Ofélia aparecia na tela porquê na vida real: um pouco desajeitada, muito gente porquê a gente, e era essa espontaneidade que encantava o público, constituído majoritariamente por donas de mansão que em suas vidas viviam as vicissitudes do dia a dia na cozinha.
Aí veio a Palmirinha, que me remeteu a outra viagem: só a conheci muito rapidamente, em Ribeirão Preto, na feira literária onde ambos palestramos (mas separadamente). O seu fascínio estava, novamente, em sua autenticidade: uma mulher simples e de trajetória sofrida, para quem a cozinha nunca foi um hobby, mas uma premência, um meio de sobreviver e de nutrir (em todos os sentidos) as filhas. Quanto mais desajeitada, quanto mais erros cometesse ao vivo, mais granjeava a simpatia e a cumplicidade do público.
Mas por que seria ela a última dessa linhagem? Acontece que a culinária cresceu, virou segmento do mundo maior da gastronomia. Se antes exclusivamente quem tinha ambições profissionais queria aprender técnicas e conhecimentos além do prato, hoje o público não profissional, o amásio que gosta de cozinhar ou consumir, aumenta e vai ficando mais exigente. Mormente nas emissoras a cabo, o padrão dos apresentadores de receitas é cada vez menos o estereótipo da dona de mansão.
Isso leva inclusive à geração de apresentadores que vivem personagens, porquê atores. Mas, por sorte, na atual profusão de programas de culinária, ainda existem os que são espontâneos (mesmo que agora mais sofisticados). Que mostram tirar conhecimento do fundo do coração (e das panelas). São estes os que mais empatia têm com um público que pode gostar de uma informação mais refinada, mas que entende também que comida boa não pode ser esnobe.
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