Digitei “lasanha” e “arroz” no campo de pesquisa do iFood e me surpreendi: dezenas de restaurantes num relâmpago de 7 quilômetros da minha moradia oferecem a combinação. Às vezes com arroz e fritas, alguns com feijoeiro também.
Pouco antes, eu havia replicado uma publicação do Twitter de uma mulher que esculachou o rotina pervertido –e, segundo ela, paulista– de manducar lasanha com arroz.
Adoro essas rinhas de internet em que o resto do Brasil se junta para espinafrar os hábitos alimentares de uma região específica, mormente São Paulo.
Dá-lhe pau no cuscuz paulista e no hot-dog com purê de batata. Tome nordestino dizendo que o claro é invocar canjica de mugunzá (e curau de canjica). A contraofensiva paulista dispara obuses de pizza com ketchup, e a vida segue sem sobressaltos.
O post da lasanha está em outro departamento. Sua repercussão me fez perceber que não se trata de uma rusga regional. O buraco é mais embaixo e merece reflexão séria, em que pese o ridículo de refletir seriamente sobre lasanha com arroz.
A autora do tuíte foi criticada por gente de Minas Gerais, do Ceará, de todo o Brasil. Apanhou tanto que apagou seu perfil na plataforma.
Num contexto que demanda respostas binárias para tudo, a lasanha com arroz divide a população em dois grupos que se desprezam mutuamente.
Ocupa uma das pontas a confraria dos iluminados. Ela tem a vocábulo “gastronomia” no repertório. Reverencia tradições, ritos e ditames alimentares. Come carbonara de trigo duro com guanciale e pecorino.
No lado oposto, a galera que nem quer saber se o italiano sobe nas tamancas quando você mistura arroz na lasanha ou quebra o espaguete ao meio.
É o povo que almoça sushi com feijoada no quilo. Que compra marmitex na traseira da van. Que manda o dog completão com refri de 600 ml. O grosso dos brasileiros, enfim.
Os abençoados da gastronomia circulam num espaço escasso em que a culinária brasileira é feita de formigas amazônicas, taioba, milho crioulo, queijo artesanal, cauim, tiquira e arroz orgânico do MST.
É a imagem romantizada de uma pátria que se alimenta de nuggets de frango, ervilha em lata, salsicha, salso de panificação, panqueca com arroz, nhoque com arroz, lasanha com arroz, qualquer coisa com arroz. Arroz geral, sem grife nem certificação.
O arroz é a sustança, a base que você adorna com elementos mais nobres, uma vez que bife à parmigiana, estrogonofe ou lasanha. O proverbial prato de pedreiro sempre tem uma serra de arroz.
Só privilegiados conseguem conceber uma gastronomia em que o carboidrato, menos dispendioso, é mero coadjuvante. Vale para o mundo todo, mas o Brasil tem um caso particularmente agudo de discrepância social.
Não digo que o Alex Atala deveria servir uma cumbuca de arroz para cada prato do menu degustação do D.O.M.
Somente que os comedores esclarecidos deste país ignoram deliberadamente o que se passa no “bar e lanches”, na padoca, no boteco de pintores e encanadores. Com tamanho descolamento da verdade, não tem gastronomia que decole uma vez que resultado de exportação.
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