Choveu durante toda a madrugada e a manhã do domingo de Carnaval em São Paulo. Na cidade de São Paulo, para ser específico.
Cá, em cima da serra, o chuvarada macondino era um perrengue para quem pretendia trespassar nos blocos –ou, para mim, um motivo para engatar um cochilo depois de estipular ressacado e tomar moca.
A Folha, ainda muito cedo, informava que a rodovia Rio-Santos, na profundeza de Ubatuba, havia sido interditada num trecho de 25 quilômetros. Alguma coisa de muito sinistro acontecia no litoral, mas reverberava muito pouco na capital até perto da hora do almoço.
Apesar de o oceano estar logo ali, é bizarro porquê a barreira da Serra do Mar ainda se impõe: o firmamento desaba, as estradas desmoronam, o sinal de celular cai, e a informação entre praia e planalto retrocede ao século 19.
Eu comecei a perceber a dimensão da tragédia em São Sebastião com um post de Instagram de Eudes Assis, o chef Eudes, que tem o restaurante Taioba no sertão de Cambury. Ele escreveu:
“Situação de calamidade pública cá no Litoral Setentrião. Nesses meus 46 anos de vida, nunca vi zero parecido por cá.”
E já anunciava que fecharia o restaurante para preparar marmitas para as vítimas da chuva, além de pedir ajuda e doações.
O apelo do chef Eudes se espalhou pelas redes sociais –primeiro, entre chefs e gente da gastronomia, depois entre artistas e santaceciliers afins– antes que os portais da prensa profissional noticiassem a catástrofe com números oficiais.
Isto não é uma sátira à prensa: porquê jornalista, sei muito da responsabilidade de apurar recta os fatos antes de trespassar publicando. Isto é um panegíricio ao chef Eudes, que se destaca na tragédia do litoral porquê um grande líder comunitário.
Eudes é uma ave rara no viveiro da gastronomia. Por sua origem, evidentemente. Não é branco porquê 95% dos chefs do mesmo calibre. Não estudou em escola de escol. Não é filhinho de papai nem colega de banqueiro, não ganhou um restaurante montado.
O chef Eudes é caiçara e mestiço, criado na mesma paisagem magnífica que nós, paulistanos, invadimos para brincar de Havaí –expulsando as populações tradicionais para as encostas periclitantes.
Ele trabalhou no Fasano, estudou na França e não se deslumbrou. Fez o que ninguém ainda tinha feito: voltou para morada e serviu comida caiçara de altíssima qualidade, por preços conformes, para os veranistas invasores.
Paulistano, quando desce a serra, gosta de remunerar fortunas por poke de salmão e brusqueta de shitake com óleo trufado, nos restaurantes qualquer-nota dos outros paulistanos. Eudes logrou romper essa lógica: capacitou sua gente e está fazendo secção do verba rodear entre os caiçaras.
O chef se entregou ao Projeto Buscapé, que dá espeque a crianças e adolescentes na praia de Boiçucanga. Lá está a cozinha que já entregou milhares de refeições para os desabrigados da chuva.
Eudes Assis, varão pequeno, de fala suave e modos gentis, revelou-se um gigante no Carnaval trágico de São Sebastião.
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